terça-feira, 21 de outubro de 2008

Os gritos de novo: eu não aguento mais. 'A menina não! Tudo, mas não encosta nela!' e as batidas e os berros, meu pai não me encostava, mas isso não impedia que eu sentisse. A cada grito, cada tapa, cada soco que ele dava em minha mãe, também eu sentia a dor, a derrota, a humilhação e ele às vezes passava semanas sem voltar para casa, não sei bem o que ele fazia, era quando eu mais gostava - mas mesmo assim eu dormia com medo. E aí ele chegava e falava aquelas coisas que eu não entendia e batia a porta e quebrava as coisas. Daí ninguém mais ria e o cheiro dele tomava a casa que a gente fiva limpando, eu e a mãe, e ela dizia pra ele parar e ele só batia e batia sem pena mesmo. E eu tentava fazer ele parar, mas ele não me ouvia, não me entendia, ele parecia um monstro que só queria fazer aquelas coisas ruins e aí eu chorava. Ficava chorando no canto que era perto do banheiro, adoro aquele banheiro branquinho e a toalha que a mãe bordou, era rosa e ficava do lado da pia, eu manchei uma toalha pintando o cabelo, adoro essa cor loira que brilha e brilha e brilha, os gritos voltam e eu quero que parem, mas eles ficam entrando na minha cabeça e não me deixam pensar. Meu pai chegava em casa e ele era alto e me lembra todos os homens que eu conheci, mas acho que eles não batiam nelas, nas mulheres, não todos eles, porque eles ficavam sempre comigo e diziam que queriam casar, mas lembro que ,antes de acontecer, minha mãe disse que homens eram assim. Então eu nem ia casar, porque eles já eram casados mesmo e eles terminavam e eu fugia, fazia como meu pai. Minhas unhas estão descascando, adoro esse esmalte que parece sangue - sangue da minha mãe, mas a cor não grita, minha mãe gritava e eu também, aquela mulher uma vez gritou comigo também, dizia que o marido era dela e a criança no colo dela, a criança estava ouvindo, a criança ia ficar triste e eu dizia pra ela parar, ela não ficava quieta nunca, daí eu tirei da bolsa e parou. As pessoas sempre param. E lembro quando eu saí de casa, eu só comprava saias, eu perguntei uma vez e minha mãe disse que as famílias eram assim mesmo, que os homens eram assim mesmo, e eu tenho umas blusas lindas também, combinam com minhas saias e ajudam tudo a ficar assim, porque minha mãe disse aquela vez que as coisas aconteciam desse jeito. Vou pegar um cigarro, sempre perco o isqueiro, ainda bem que tem fósforo, e adoro sentir a fumaça que entra nos meus pulmões com força, que força que meu pai batia!, e o psiquiatra me disse que eu tinha muita vontade de viver e era um exemplo, mas viver pra mim é sentir esse ar dentro de mim e colocar ele pra fora, colocar os homens pra fora de casa, porque eu que mando e faço as coisas, não quero bater em ninguém, mas é assim que a vida é. E o psiquiatra fala que é um milagre eu ser tão confiante depois de tudo que eu passei, mas eu confio só em mim mesma e isso é muito fácil, porque eu nunca grito, nem choro mais, tudo isso passou e a última vez foi aquela do sangue, igual ao meu esmalte, tenho que marcar uma hora pra arrumar e pintar meu cabelo também, tenho que ser linda, fazer as famílias ficarem do jeitro que devem ser. Meu cigarro tá acabando, vou acender mais um, aquela vez minha mãe tava com o cigarro na boca também e eu brincava com minhas bonecas loiras como eu sou agora e a gente ria, daí ele chegou - fazia tempo que não vinha - e a gente parou de rir e ele empurrou e machucou e eu ficava só assistindo escondida, com as lágrimas. A vista daqui de cima é linda, uma vez eu tava aqui com aquele homem e ele tirava a aliança sempre e dizia pra eu parar de arranhar e morder ele que a mulher ia ver, que eu sempre deixava marcas, mas meu pai deixou as marcas maiores e ele jogou minhas bonecas longe e bateu na mãe que disse pra parar, ele tirou a navalha e ele cortou ela toda e ela gritava, e eu chorava, o sangue era igual ao meu esmalte, só que não parava de sair nunca. E daí tudo parou e não houve mais lágrima ou berro, daí ficou tudo escuro, mas as famílias são assim mesmo e elas têm que ser desse jeito. Vou pegar mais um cigarro, meu celular não pára de chamar, e é a mulher desse homem que sumiu, eles sempre somem, eles não querem mais voltar. Vou jogar esse celular longe, ah, meu isqueiro tá dentro da bolsa, do lado da navalha, igual a que o meu pai tinha, eu uso às vezes, porque os homens têm que ficar longe de mim depois de um tempo, não quero que eles casem comigo, porque eu nem quero uma família mesmo, o psiquiatra fica dizendo que eu tenho vontade de viver, eu tenho mesmo, quero viver sempre, aí vêm os gritos, as lágrimas, ele batendo nela, essa vista linda, vou sentar na janela pra fumar e pensar, não sei com quem vou sair hoje, os gritos voltam, cada vez mais forte e eu sempre fui muito confiante, olha a minha mãe lá embaixo, quero contar pra ela o que eu aprendi sobre as famílias, vou até ali, vou pular, ela não chora também e ela está acenando porque me vê, vou ali porque nunca mais chorei, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe, mãe.

2 comentários:

Rafaela V disse...

No teatro, o ponto final. As cortinas se fecham, a platéia se prepara para aplaudir. Bem defronte ao palco, no segundo andar, Rafaela põe-se em pé, olhos mareados, infla o peito. E, num raro momento de impulsividade e coragem, expira palavra.
- BRAVO!!!!!!

-
(Uma campanha a favor de mais narrativas ficcionais por Angie Boop. Porto Alegre, 2008.)

Kev. disse...

Ficção ou não, eu chorei lendo esse texto...
Não tenho muito a dizer.
Vou lá fora fumar um cigarro...
Até mais.